Multipropriedade imobiliária e arrendamento: aspectos jurídicos essenciais para a advocacia
- Rogério de Castro Gusman
- 7 de nov.
- 6 min de leitura

A multipropriedade imobiliária, disciplinada pelos arts. 1.358-B a 1.358-U do Código Civil, é hoje um direito real típico. Ela permite que um mesmo imóvel seja utilizado por pessoas diferentes, em períodos certos e determinados.
O imóvel permanece uno, mas o tempo de uso é fracionado e atribuído a cada titular. O material de referência define o instituto como o "regime de condomínio em que cada um dos proprietários de um mesmo imóvel é titular de uma fração de tempo, à qual corresponde a faculdade de uso e gozo, com exclusividade, da totalidade do imóvel, a ser exercida pelos proprietários de forma alternada".
Legalmente, o imóvel objeto da multipropriedade é indivisível e não se sujeita à ação de divisão ou de extinção de condomínio. Isso interessa diretamente à advocacia imobiliária porque altera a forma de registrar, de cobrar despesas, de transferir a propriedade e de litigar em nome do condomínio.
A lei deixa claro que o titular da fração de tempo não tem apenas direito de usar o imóvel no seu período. Ele pode dispor do direito. O Código Civil, conforme destacado na obra de referência, prevê expressamente que o multiproprietário pode "ceder a fração de tempo em locação ou comodato". Pode também "alienar a fração de tempo, por ato entre vivos ou por causa de morte, a título oneroso ou gratuito, ou onerá-la". Isso significa que a fração de tempo tem circulação própria, como acontece com uma unidade autônoma. Quem advoga para comprador ou vendedor deve tratar essa fração como direito real registrável e negociável, e não como simples “reserva de hospedagem”.
Um ponto que precisa constar em qualquer parecer sobre o tema é a transferência sem anuência. A lei optou por facilitar a circulação. A "transferência do direito de multipropriedade... não dependerão da anuência ou cientificação dos demais multiproprietários". Na prática, isso afasta discussões de preferência legal entre os demais coproprietários e dá segurança ao negócio, porque o adquirente não precisa coletar assinaturas de todos. Na due diligence, o foco não está em “quem concorda”, mas se o título está apto ao registro e se há débitos pendentes vinculados àquela fração.
Também há disciplina própria para a participação política. O multiproprietário participa das assembleias e vota na proporção de sua fração de tempo no imóvel. Se a multipropriedade estiver inserida em condomínio edilício, o voto na assembleia desse condomínio também observará a proporção da fração em relação à unidade. Isso evita que alguém com poucos dias de uso tenha o mesmo peso de quem possui períodos maiores. Para quem atua em impugnação de assembleias, esse detalhe é relevante, porque a contagem de votos precisa respeitar a proporcionalidade legal e a eventual exigência de estar quite para votar.
No campo das obrigações, a lei foi rígida. O multiproprietário é obrigado a "pagar a contribuição condominial". As despesas de custeio, manutenção, administração e conservação são devidas mesmo que o titular não utilize o imóvel no seu período. A lógica é a mesma do condomínio edilício: o custo é de quem é proprietário (propter rem), não de quem efetivamente ocupou.
Se houver inadimplência, a consequência não se limita a multa ou proibição temporária de uso. A legislação admite que, seguindo o procedimento cabível no CPC e o que estiver previsto na convenção, "é cabível, na forma da lei processual civil, a adjudicação ao condomínio edilício da fração de tempo correspondente". Em outras palavras, o inadimplemento pode levar à perda do próprio direito real. Para a advocacia de cobrança, isso é fundamental, porque dá uma via de tutela mais forte do que a cobrança comum.
Tudo isso precisa dialogar com os contratos de exploração. Como a lei permite que o multiproprietário ceda o uso do seu período, o advogado deve redigir contratos que indiquem claramente o intervalo de tempo cedido, a obrigação de o terceiro respeitar o regulamento interno e o condomínio, e a inexistência de direitos sobre períodos de outros titulares. É o contrato que vai impedir que um locatário de temporada queira permanecer no imóvel no período seguinte, que pertence a outra pessoa. Em empreendimentos que funcionam com administração centralizada ou pool de locação, o contrato deve remeter às regras do administrador e à convenção registrada, porque ali estão as restrições de hospedagem, "número máximo de pessoas que podem ocupar simultaneamente o imóvel", check-in e check-out.
Para quem atua no registro de imóveis ou revisa títulos antes do protocolo, a sequência prática é conhecida. Primeiro, verificar se a multipropriedade foi de fato instituída "por ato entre vivos ou testamento, registrado no competente cartório de registro de imóveis".
Depois, conferir se a convenção está averbada e se dela constam o calendário de uso, a forma de administração e o modo de rateio das despesas. Em seguida, analisar se o título de transferência da fração está formalmente perfeito. A partir daí, o registro é que fará nascer a oponibilidade erga omnes daquele novo titular.
A Multipropriedade sob a Ótica de Outras Áreas do Direito
A complexidade da multipropriedade exige uma visão multidisciplinar do advogado, impactando diversas áreas além do Direito Imobiliário e Condominial.
1. Direito de Família e Sucessões
Partilha de Bens: A fração de tempo, sendo um direito real, integra o patrimônio do casal e, portanto, deve ser considerada na partilha de bens em divórcios, uniões estáveis ou dissoluções. Sua valorização ou desvalorização deve ser avaliada.
Herança e Testamento: A possibilidade de alienação por causa de morte significa que a fração de tempo pode ser objeto de herança e disposta em testamento. É essencial que o planejamento sucessório do multiproprietário contemple este bem, evitando litígios futuros entre herdeiros sobre o uso dos períodos.
Usufruto e Doação com Reserva: É plenamente possível constituir usufruto sobre a fração de tempo ou doá-la com reserva de usufruto, permitindo, por exemplo, que os pais doem a fração aos filhos, mas mantenham o direito de uso vitalício.
2. Direito do Consumidor
Vícios de Informação e Publicidade Enganosa: A comercialização de multipropriedades, muitas vezes em cenários de forte apelo turístico e vendas sob pressão, é um terreno fértil para a aplicação do Código de Defesa do Consumidor. Questões como promessas de rentabilidade não cumpridas, informações imprecisas sobre taxas de manutenção ou sobre a dificuldade de revenda podem configurar vícios de informação.
Direito de Arrependimento: Em vendas realizadas fora do estabelecimento comercial (online, em stands de vendas em resorts), o consumidor possui o direito de arrependimento no prazo de 7 dias, conforme o CDC. Advogados devem orientar seus clientes sobre a correta aplicação desse direito e as consequências em caso de não cumprimento pelo empreendedor.
Cláusulas Abusivas: As convenções e os contratos de adesão podem conter cláusulas abusivas, como multas desproporcionais, restrições excessivas ao uso ou à cessão da fração, ou mesmo a fixação unilateral de valores de taxas. A advocacia consumerista pode atuar na revisão ou anulação dessas cláusulas.
3. Direito Empresarial e Holding Patrimonial
Estruturação de Patrimônio: A multipropriedade pode ser inserida em estruturas de holding patrimonial, especialmente para famílias que desejam organizar a sucessão de bens e a utilização de imóveis de veraneio. A fração de tempo pode ser integralizada no capital social da holding, que então gerenciará seu uso entre os sócios/beneficiários, ou até mesmo sua exploração econômica.
Investimento Hoteleiro/Turístico: Para investidores ou empresas do setor de turismo, a aquisição de múltiplas frações de tempo em diferentes empreendimentos pode configurar uma carteira de ativos, gerando receita por meio da locação ou disponibilização para hóspedes. A análise da viabilidade econômica e dos riscos jurídicos, como a concorrência com a hotelaria tradicional e as restrições da convenção, é crucial.
4. Direito Tributário
IPTU e ITBI: O multiproprietário é contribuinte do IPTU proporcionalmente à sua fração de tempo. Na transferência da fração de tempo, incidirá o Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI), calculado sobre o valor venal do direito transferido.
Imposto de Renda: A exploração econômica da fração de tempo (locação, por exemplo) gera receita tributável, sujeita à apuração do Imposto de Renda. A complexidade aumenta quando a exploração é feita por meio de pools de locação ou administradoras, exigindo atenção à forma de repasse e tributação dos rendimentos.
5. Outras Áreas
Mediação e Arbitragem: Dada a natureza de condomínio e o potencial de conflitos entre multiproprietários sobre o uso, despesas ou administração, a mediação e a arbitragem podem ser mecanismos eficientes para a resolução de disputas, desde que previstas na convenção.
Direito Ambiental e Urbanístico: A localização do empreendimento multiproprietário em áreas de proteção ambiental ou sujeitas a restrições urbanísticas (planos diretores, zoneamento) pode impactar o uso e a valorização do bem, exigindo due diligence específica nessas áreas.
Conclusão
A multipropriedade, como está hoje no Código Civil, permite: uso periódico exclusivo; transferência livre da fração de tempo sem anuência dos demais; exploração econômica lícita do período por locação ou comodato; participação e voto proporcionais; e reação forte contra o inadimplemento, inclusive com adjudicação da fração.
Para a advocacia contemporânea, compreender a multipropriedade vai muito além do Direito Imobiliário. A necessidade de diálogo com o Direito de Família e Sucessões, o Direito do Consumidor, o Direito Empresarial e o Direito Tributário é crescente. O advogado deve estar apto a orientar seus clientes sobre os riscos e oportunidades em todas essas esferas, seja na aquisição, na alienação, na gestão patrimonial ou na resolução de conflitos, garantindo que o regime especial previsto pela lei seja efetivamente aplicado e otimizado para os interesses de cada titular.
Referências Bibliográficas
Doutrina Citada (ABNT): CASSETTARI, Christiano. Condomínio em multipropriedade. In: CASSETTARI, Christiano (Coord.); CASSETTARI, Christiano; SALOMÃO, Marcos Costa (Autores). Registro de Imóveis. 2. ed. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2023. p. 284-293.
Normativas Essenciais:
Código Civil, arts. 1.358-B a 1.358-U.
Lei nº 13.777/2018 (que introduziu o regime de multipropriedade no Código Civil).
Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990).
Aplicação supletiva das regras de condomínio edilício do Código Civil, quando compatíveis.
Rogerio de Castro Gusman é advogado, editor do fundamentojuridico.com.br e criador do contadordeprazo.com.br
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